Da minha infância... outra vez
De facto há coisas que mexem com as nossas memórias mais antigas. Esta fotografia foi partilhada por alguém no Facebook e quando olhei para ela viajei no tempo até à minha infância, mais pecisamente aos verões da minha infância.
Nasci no Alentejo, no monte onde o meu avô morava, num quarto que tinha em frente à janela uma bela figueira debaixo de cuja sombra brinquei, fiz piqueniques, fui feliz, muito feliz.
A cozinha era tal e qual a da foto, havia uma grade, com camarões onde se penduravam os tachos, as cafeteiras e os púcaros e ao lado uma estante onde estavam os pratos. Na mesa da cozinha, numa gaveta estavam os talheres. De alumínio, que é uma coisa que já não existe. A sério quem nunca comeu sopa com colher de alumínio não sabe o que é sopa. Havia ainda uma base com uma bacia de lavatório e um jarro com água para lavarmos as mãos e um cântaro de barro, não pedrado, esses eram para quem tinha mais dinheiro, com um texto e um púcaro para beber água. A melhor e mais fresca água que se pode beber. Anos mais tarde comprei um cântaro e trouxe para a minha casa e um dos meus sobrinhos adorava beber a água fesquinha pelo púcaro e dizia-me deliciado: Tia a tua água é 'celente!
A casa do avô era pobre, mas juro que foi dos sítios onde fui mais feliz na minha infância. Provavelmente o único onde isso aconteceu.
Sou filha única e por isso ir para casa do avô no verão significava companhia para brincar e muita liberdade.
E na minha memória ficaram cheiros, cores, sabores... O cheiro da terra molhada com as inevitáveis chuvas dos últimos dias de agosto, o cheiro da sopa de feijão com couves feita na panela de ferro ao lume na casa da minha tia, o cheiro do sabão azul e branco com que tomávamos banho, o cheiro doce dos figos da índia, o cheiro do meu avô. Ele cheirava sempre a lavadinho. Tão bom. Tenho tantas saudades. O cheiro da lareira onde se cozinhava fosse verão ou inverno.
A cor do céu de verão, do nascer e do pôr do sol. A cor da água da barragem onde nos refrescávamos deliciados numa época tao longinqua que eu ainda nem tinha horror à água fria. A cor do trigo pronto a ceifar, do feijão verde, das alfaces, dos tomates e das abóboras na horta da minha tia. A cor do meu cabelo, quase branco depois de um verao inteiro ao sol, quando ainda não tinham inventado o cancro de pele, etc.
Os sabores dos rebuçados de osso (pronto, ok, eram de açúcar, mas tinham feitio de osso) que compravamos na tasca do senhor João, no Castelo, o sabor dos peixes acabados de apanhar na ribeira de S. João, das perninhas de rã (já sei, já sei...), o sabor dos gelados de groselha feitos nas couvetes do frigorifico, o sabor da tal sopa de feijão com couve, do poejo, da hortelã brava, dos coentros que ainda hoje perfumam quase todos os meus tachos, das amoras acabadinhas de colher e comidas tão quentes que é espantoso como não morri de... enfim, vocês sabem de quê.
O bom que é beber água fresquinha saída da bica da fonte Pales, o bem que sabe apanhar os figos e comê-los logo ali, quentes, com pó, mas bons, doces como não se vendem no supermercado.
E o mel da silva, como o meu pai lhe chamava. Quando as silvas das amoras começam a ficar semi-secas, o meu pai abri-as com um canivete alentejano e lá dentro existiam umas pequeninas bolinhas amarelas, doces, doces, como mel. Das silvas, lá está.
E comer azeitonas ainda tão azedas que ficavamos com a boca forrada. E beber leite acabado de tirar da cabra. E contar as estrelas e pedir muitos desejos de cada vez que víamos uma estrela cadente. E víamos tantas.
E apanhar pirilampos, pô-los debaixo deum copo e no dia seguinte ter lá um tostão (nem sei quanto é em cêntimos), que juntávamos e usavamos para comprar porcarias.
Comer pão acabado de cozer com muita manteiga a escorrer pelos dedos. Comer boleima como se não houvesse amanhã.
Comer um achigã assado com molho de poejo sem garfo ou faca, com as mãos e chupar os dedos no fim.
Uma falta de educação, mas tão bom. Não há nada melhor do que ser criança, comer uma coisa de que se gosta e chupar os dedos no final.
Tão bom ser criança.
Tenho tanta pena destes miúdos de hoje que não têm uma infância assim e vivem esterelizados e desinfectados em apartamentos igualmente esterelizados e desinfectados.
Tenho mesmo. É tão bom sujarmo-nos, fazer nódoas negras, arranhões nos joelhos, chupar os dedos, comer pó e amoras quentes e figos acabadinhos de apanhar. Tão bom. Fez-me tão bem e deixou-me as melhores memórias que alguém pode ter.
Também me deixou algumas cicatrizes no joelhos, mas isso só me fez bem.