... Não faças o que faço. Este parece ser cada vez mais o lema dos nossos governantes e afins.
No último sábado fui com as minhas filhas visitar o Jardim Botânico Tropical, em Belém, ali mesmo ao lado do Mosteiro dos Jerónimos.
Primeira tentativa de entrada - falhada. Não tinha dinheiro comigo e curiosamente não existe multibanco no JBT. “Irritei-me. “Vocês vivem na pré-história, ou quê? Mas onde é que raio não existe multibanco hoje em dia?”. Já sei, já sei. Tenho um mau feitio de cortar à pedrada. Temos pena. Convenhamos que em pleno século XXI é um bocadinho ridículo que a única forma de pagar seja com dinheiro. É que o valor nem era muito, nós éramos quatro e o total das entradas perfazia 8 euros, mas eu tenho o péssimo hábito de andar sem dinheiro. Desculpem lá, mas até o minimercado da minha rua tem multibanco e não nos torcem o nariz se quisermos pagar com ele. Gosto mesmo da minha rua.
Lá fui com os três jovens atrás em busca do multibanco mais próximo. Levantei dinheiro e voltámos.
Segunda tentativa: “Preciso de uma fatura se faz favor!” “Nós aqui não passamos faturas. Posso é passar-lhe uma fatura pró-forma (o exemplar acima, que na verdade não passa de uma folha a4, escrita à mão e assinada pelo funcionário da receção, sem qualquer tipo de validade legal, naturalmente). Depois enviam-lhe a fatura para a morada que nos indicar. Quer preencher o impresso?” “Naturalmente, preciso da fatura, é obrigatório pedir fatura, não é?”.
Estive uns bons cinco minutos a ver o funcionário a debater-se com os dados da futura fatura, que depois hei-de contar se e quando recebi. No final dobrou diligentemente a folhinha em 4 e entregou-ma.
Vamos lá a ver se nos entendemos - Então há quatro anos que este governo e os anteriores, mas este em especial, anda a moer-nos literalmente a cabeça e a paciência para pedirmos faturas em tudo o que e sítio, ameaçando toda a gente com as fugas fiscais e etc. E depois, quando uma pessoa vai visitar um espaço sob a alçada do governo, a primeira coisa que descobrimos é que quem devia dar o exemplo não está em condições de fazer cumprir as suas próprias leis. A sério? Como é que pretendem “educar” o povo?
Fiquei a pensar nos senhores lá do governo como aqueles pais que dão grandes lições de moral aos filhos, mas que depois falham nos exemplos quotidianos. Tipo: “Zézinho não tires macacos do nariz”. E depois vemos o pai do Zézinho ao volante do carro a limpar afincadamente o salão de baile enquanto o puto o observa sentado na cadeirinha, devidamente homologada pelas normas da CE, a pensar que tirar macacos do nariz deve ser um privilégio de adulto.
É a mesma coisa, salvo seja. Então como é possível que as mesmas pessoas que nos obrigam a estar atentos à fraude fiscal, que nos querem obrigar a pedir fatura até da bolinha de Berlim que comemos na praia, não consigam uma coisa tão simples como passar uma faturazinha de 8€ a uma mãe de família cumpridora das normas legais em vigor.
E depois admiram-se do meu mau feitio. Eh pá, desculpem lá, mas se continuam a provocar-me desta maneira até sou capaz de piorar de feitio.
Ah, já agora, o JBT é um sítio bem giro. Só é pena o Palácio dos Condes da Calheta não estar aberto ao público.
Não, não é essa primeira vez. É a primeira vez que eu fui a uma entrevista de emprego. Era tão garota, tinha 19 anos. Não sabia nadinha de nadinha. Mas estava cheia de propósitos, projetos e força de vontade. Se calhar foi o que me safou.
Passei os três meses de verão enfiada numa escola a tirar um curso de “secretariado e práticas de escritório”, que habitualmente durava seis meses. Mas eu tinha pressa, tive sempre muita pressa na minha vida. Tinha acabado o 11º ano e queria começar a trabalhar o quanto antes. Precisava de me sentir independente, de não ter de dar explicações, de me sentir só um bocadinho mais livre. Eu nunca podia nada, festas de anos “mas quem é, nós não conhecemos”, idas ao cinema “nem penses que vais andar por aí feita vadia”, à noite “nem pensar. Era o que mais faltava”. E pronto, era a minha vida. Só saía com os meus pais ou, no máximo, com uma amiga, filha de amigos deles, mais velha e que portanto, tinha mais juízo. E foi sempre bom sair com ela, foi o que manteve alguma sanidade na minha vida.
Mas eu saí, não pensem que não saí. Tornei-me na rainha das desculpas - Trabalhos de grupo (escola não podiam dizer que não, não é?), mais trabalhos de grupo, aulas extras porque sim. Cheguei a alterar o horário no primeiro dia de aulas só para os fazer acreditar que tinha um horário mais sobrecarregado. Valia tudo para não ir para casa. E se me apetecesse ir podia sempre dizer que os professores tinham faltado. Nesse tempo ainda não tinham inventado as aulas de substituição.
Mas uma pessoa cansa-se de viver assim e começa a ficar fartinha de estar sempre a inventar, mesmo com uma imaginação prodigiosa como a minha.
Por isso resolvi que estava na altura de sair da escola e começar a ganhar o meu dinheiro. Estava mesmo fartinha daquilo. “Vais o quê? Deixar de estudar? Mas tu estás doida? Vais é para a faculdade tirar um curso para seres advogada”. Não sei porquê mas a minha mãe sempre achou que eu dava uma ótima advogada. Se calhar é só porque sou muito refilona e tenho sempre muitos argumentos. Não sei, nunca lhe perguntei.
Convenci a escola a deixar-me fazer o curso em metade do tempo. Tinha mesmo que despachar aquilo durante o verão, queria estar a trabalhar o mais rápido possível. Fiz o meu curso e terminei com uma nota muito próxima do 20. Nem foi difícil, estava a lutar pelos meus objetivos e sempre fui muito persistente. Tive tanta sorte. No dia a seguir ao final do curso, ligaram para a escola de uma empresa de Sacavém (eu morava perto de Alverca) e pediram uma pessoa despachada (eu), espevitada (EU), que tivesse acabado o curso com boa nota (eu) e que quisesse começar a trabalhar (eu). A experiência não era importante para eles, queriam ensinar a pessoa desde o início. Ligaram-me da escola a perguntar se eu estava interessada. Nem tinha telefone em casa, ligaram para casa de uma vizinha, que me chamou e lá me deram o recado. Deram-me o número de telefone para eu contactar a empresa. Liguei para lá logo de seguida: “Acha que pode vir cá amanhã para a conhecermos?”; “Posso ir hoje, dê-me só tempo para chegar aí”. Eu não tinha carta e morava quase no fim do mundo, mas lembrei-me que o meu pai estava de folga em casa e de alguma forma ia conseguir convencê-lo. Consegui. Lá nos metemos no carro e em menos de uma hora, lá estava eu, nervosa, nervosa, consciente que não sabia nadinha de nadinha, que nunca tinha estado numa entrevista de emprego… Controlei os nervos, toquei à campainha. Receberam-me os dois, um casal que eram os donos da empresa de som profissional, na avenida mais central de Sacavém. Ele gostou logo de mim, acho que percebeu logo que eu era despachadinha, ela teve algumas reticências. “Moras um bocadinho longe, vais chegar muitas vezes atrasada…”. Atrasada, eu? “Nunca”, garanti, “ a não ser que os transportes me falhem. Eu odeio chegar atrasada (até hoje). Acho que e uma grande falta de respeito para quem está à nossa espera”.
Ela continuava reticente e por isso arisquei: “Olhe, vamos fazer assim, contrata-me por um mês à experiência (acho que fui eu que inventei esta coisa da experiência), se eu chegar atrasada no final do mês manda-me embora e nem tem que me pagar. Parece-lhe bem?”. Ficou impressionada, vi nos olhos dela que ficou. O marido riu-se e disse-lhe: “Vês, eu sabia que era ela que nós estávamos à procura”. “Podes começar amanhã?”. “Posso começar hoje, se quiser, deixe-me só ir lá fora dizer ao meu pai para se ir embora”. Não foi preciso, ficámos para o dia seguinte. “Estás cá às 9 horas”. Estive lá às 8h20m. Tinha pavor de chegar atrasada.
24 de setembro de 1985 marcou a minha entrada no mundo do trabalho. Tão bom, estava tão feliz, tão cheia de vontade de aprender, de me tornar mais independente. Comecei a ganhar quinze contos, qualquer coisa como 75 euros. Era uma miséria de ordenado, mesmo naquela altura, mas eu também não sabia fazer nadinha e por isso, fiquei muito feliz. No primeiro dia mandei duas chamadas telefónicas para o espaço, não sabia funcionar com aquilo e era muita coisa nova para aprender. A minha primeira patroa, Lurdes, foi fantástica comigo. Ensinou-me muito do que sei sobre o funcionamento de uma empresa, de um escritório, sobre ser uma boa secretária. O resto das pessoas que lá trabalhavam eram todas mais ou menos da minha idade. Uma equipa muito jovem, trabalhavam na fábrica, ao lado do escritório. O Eng.º António José era uma espécie de génio, capaz de ir trabalhar de pijama, se a mulher não o mandasse vestir-se. Mas era muito inteligente, concebia todos os equipamentos, mesas de mistura, equalizadores, amplificadores, colunas de som, monitores de palco, etc, que eram produzidos na fábrica.
No último dia de setembro comecei a ver os meus colegas a entrarem no gabinete da Lurdes e a saírem com os seus envelopes na mão. Nessa altura ainda se recebia muito em dinheiro. Era bem mais interessante do que estas modernices das transferências bancárias. O dinheiro tinha outro valor. Eu não estava à espera de um envelope. Só tinha trabalhado seis dias e tinha um acordo de um mês. A Lurdes chamou-me e estendeu-me um envelope e um recibo para assinar. Fiquei a olhar para ela com cara de parva. “Assina miúda, que bem o mereces. Estás liberta do nosso acordo. Já percebi que tu só és novinha na idade, tens muito juízo nessa cabeça e tens-te portado muito bem”. Fiquei tão orgulhosa. De tudo. Das palavras dela e de receber o meu primeiro salário, dois contos e uns trocos, uns dez euros, por aí. Cheguei a casa com um sorriso de orelha a orelha. Comprei o meu passe para o autocarro e ara o comboio, comprei uma roupa nova e guardei o resto. Abri a minha primeira conta bancária, no BES, que nessa altura ainda se chamava BESCL (Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa) e comecei a depositar todos os meses um bocadinho do meu ordenado. Nessa altura conseguia poupar-se dinheiro.
Trabalhei na Acutron durante um ano e meio, mais ou menos. A empresa comprou novas instalações e mudou-se para mais longe e era quase impossível ir para lá sem transporte próprio. Um dos clientes, que ia ficar com as instalações antigas perguntou-me se queria trabalhar com ele e foi assim que transitei para outra empresa e conheci o Paulo, mas essa é toda uma outra história.
Na loja de vestidos de noiva, a senhora, muito solícita, ia apertando a cada prova a cintura do vestido e repetia: “Parece que vai fazer a primeira comunhão. É tão miudinha”.
Tinha 19 anos.
Tinha começado a trabalhar em setembro e o casamento estava marcado para 28 de dezembro desse mesmo ano. O espelho devolveu-me a minha imagem. Fiquei a olhar para mim como se não me conhecesse. Onde estava o meu sorriso? A minha alegria? O brilho do meu olhar? Sempre me tinham dito que os meus olhos eram um livro aberto para a minha alma, que eram transparentes. Não me reconheci na imagem daquela miúda triste e desanimada que vestia um vestido de noiva, que parecia de primeira comunhão. Foi nesse momento que tomei a decisão de mudar as coisas. Já sabia que não ia ser fácil, mas tinha mesmo que ser. Foi aí que tudo começou a mudar.
Tinha começado a namorar com o F. com 14 anos durante as férias de verão no Alentejo. Ele era bem mais velho do que eu, acho que mais uns oito anos. Esse foi o verão da minha afirmação. Finalmente tinha deixado de usar óculos, cortei o cabelo, comprei roupas giras e senti-me, eu própria, muito gira. É um facto que a beleza também vem de dentro, ou então foi a minha recém descoberta autoconfiança que ajudou a que tudo acontecesse.
Conheci-o na aldeia, durante o verão. Ele fazia parte do grupo de amigos do meu primo. Não era muito alto, mas eu sou baixinha. Tinha olhos verdes e um ar engraçado. Também me deve ter achado piada e começámos a conversar e a trocar olhares. Descobri que tinha algum jeito para o jogo da sedução. Somos tão parvas com 14 anos. Antes do final do verão trocámos os primeiros beijos e as respetivas moradas. Nessa altura, estamos a falar de 1980, não havia telemóveis, a internet ainda não tinha sido inventada e nem toda a gente tinha telefone fixo em casa, por isso ainda se escrevia muito. Dei a morada da loja de uma amiga porque já sabia que os meus pais iam investigar quem era o tal que me andava a escrever. Infelizmente não contei com os pais da minha amiga. Demorei-me a ir buscar uma carta e a senhora, muito bem intencionada entregou-a à minha mãe. Um dia quando cheguei a casa estava o meu pai de carta, naturalmente aberta, em punho.
- Quem é este? De onde é que vocês se conhecem? Quais são as intenções dele contigo? De quem é que ele é filho?
Sei lá de quem é que ele é filho. O que é que isso interessa? Nem namorava com os pais dele… Intenções? Que intenções? Namorávamos, só isso.
- Namorar é para casar. Eu só namorei o teu pai. (Será?) Ele que fale connosco se quer namorar contigo. E a partir de hoje escreve cá para casa.
Informei o interessado, que mais velho, achou tudo muito bem. E não percebi onde me estava a meter, nem pouco mais ou menos.
Tenho que confessar que tive outros namorados. Nunca lhe fui fiel. Lamento, mas tinha 14 anos. E ele estava no Alentejo. Acho que na minha cabeça o namoro só era oficial quando eu lá ia. Começou a escola e descobri que as minhas mudanças davam na vistas. Tive muitos namorados nesse e nos anos seguintes. Ele continuava no Alentejo e continuávamos a namorar, por carta, claro, e sempre que eu ia ao Alentejo. Agora com a bênção parental.
Acho que nunca gostei verdadeiramente dele, era demasiado miúda. Nunca passámos de beijinhos e pouco mais. Nunca o deixei avançar muito, era muito púdica, dizia ele, eu simplesmente não tinha vontade de avançar mais. Já tinha lido muitos romances e achava que ainda não sentia o necessário por ele para avançar para coisas mais íntimas. É o que dá ler muitos livros, a pessoa fica com ideias…
Acabei o 11º ano e passei o verão a tirar um curso de “secretariado e práticas de escritório”, que me permitiu começar a trabalhar em setembro. Os meus pais, os dele e o próprio marcaram o casamento. Os pais deles deram-lhe o dinheiro para a entrada de um apartamento, um rés-do-chão com quintal a menos de cinco minutos da casa dos meus pais, e os meus pais mobilaram-no com uns móveis em “estilo antigo” absolutamente terríveis. Começámos (começaram, nem sei) a mandar convites, a escolher restaurantes, fotógrafos e o vestido de noiva…
Comecei a perceber o que estava a acontecer. Caí na real, como dizem os brasileiros. Caiu-me a ficha, como se diz agora.
Perdi o sorriso, a alegria, a vontade de tudo… No sítio onde eu trabalhava a minha patroa, uma pessoa fantástica começou a apertar comigo para lhe contar o que se passava. Contei-lhe tudo, mas tinha a sentença lida: “Se não te casares sais de casa”. E eu ganhava uma miséria e, convenhamos, continuava a ser uma miúda, tinha 19 anos. A minha filha mais nova tem agora 20 e não consigo imaginá-la nem perto de um altar. A minha patroa foi maravilhosa: “Se o teu pai te puser na rua, vais para minha casa até resolveres as coisas. Ajudas-me com as miúdas. Não ficas na rua, não te preocupes”. Ganhei coragem. As minhas colegas de trabalho também me ajudaram, aliás foi na casa de uma delas que me refugiei.
Falei com o noivo, disse-lhe que não conseguia continuar com aquela farsa, que não gostava dele, que era muito miúda, que ainda queria fazer muita coisa. Ficou violento, levantou-me a mão, tive de me defender, levantei um joelho, acertei-lhe num sítio delicado e fugi. Corri para minha casa, contei que me tinha tentado bater, perguntaram-me porquê e repeti a história: “Não consigo casar com ele, tenho nojo dele, não suporto que me toque, não aguento o cheiro dele, não gosto dele”.
Insultos, insultos, insultos, ameaças, ameaças e mais ameaças. “Casas a bem ou a mal. Não me vais envergonhar na minha terra, que nunca mais lá vou poder pôr os pés. O que é que vamos dizer às pessoas?”. As pessoas, sempre as pessoas, sempre os outros, muito mais importantes do que uma filha feliz ou infeliz.
As coisas pioraram e muito. No dia seguinte, esperei que a minha mãe saísse para a missa, provavelmente para pedir a Deus uma filha mais obediente e com menos vontade própria, e que o meu pai saísse para a tasca e saí também, com um saquinho pequenino, para não dar muito nas vistas, só com uma muda ou duas de roupa e fui direta a casa de uma das minhas colegas de trabalho. Chorei, chorei, já nem me lembro bem, já se passaram 30 anos. Fiquei lá apenas umas horas. Os meus pais fizeram uma pequena investigação e acabaram por me ir lá buscar.
Novas regras em casa: “A partir de agora se quiseres comer, compras a comida e cozinhas para ti (que novidade, desde os sete anos que fazia o meu almoço)”. O meu pai deixou de me falar a não ser que fosse para me insultar, a minha mãe andava mais ou menos na mesma. Mas o casamento ficou fora de hipótese. Menos mal.
Quando fomos começar a tirar as coisas ao tal apartamento de rés-do-chão com quintal, o F. apareceu e começou a insultar-me a mim e à minha mãe. Pela primeira, e acho que única vez na minha vida, o meu pai defendeu-me, mas se calhar foi só porque o meu tio estava lá e ele sentiu-se nessa obrigação. Ele ameaçou atirar coisas da chaminé para cima da minha mãe e eu atirei-lhe uma bela jarra de cristal à cabeça, que lhe abriu a testa. Ameaçou-me com uma queixa. Nem me incomodei a responder-lhe. Para quê?
O meu pai esteve uns dois anos sem ir ao Alentejo e a minha mãe foi lá comigo quando nasceu a minha afilhada, filha de uma irmã dela. Mas ficámos em casa da minha tia, não na nossa casa, demasiado central e exposta, e fomos a casa de um outro tio pelas ruas de “trás”, pelo meio dos campos. A minha mãe tinha vergonha e não queria “passar à porta dos pais dele”, que “não sei o que hei-de dizer às pessoas”, porque “tu só me fazes passar vergonhas”. Enfim.
Devolvi o vestido de noiva, o tal que parecia de primeira comunhão. Fiquei com um crédito na loja para futuras compras. Menos mal. Recuperei o sorriso e o brilho dos olhos.
As loiças, os tachos, os lençóis, as toalhas voltaram a ser arrumadas no sótão. Os móveis foram devolvidos e alguns transitaram para casa dos meus pais. Ainda hoje lá estão. Era de “estilo antigo”, de boa qualidade. “Já não se fazem móveis assim”. Ainda bem, são horríveis. E cheios de má energia.
Eu? Eu nunca tive vergonha de voltar ao Alentejo. Vergonha de quê? Não matei nem roubei ninguém. Não tenho que ter vergonha de querer ser feliz, pois não? Não sei se ele alguma vez casou. Cruzei-me uma ou duas vezes com ele depois disso, mas confesso que não senti qualquer remorso. Se não ultrapassou é porque é fraco de carácter e isso só dá mais razão à minha decisão de não querer casar com ele. Acho que nunca mais vi os pais dele, o que é curioso porque falamos de uma aldeia pequena onde toda a gente se conhece. Mas também não vou lá assim tanta vez.