Os meninos brincam com carros, as meninas com bonecas…
É assim, de forma inconsciente, que começamos a enfiar preconceitos e ideias feitas nas cabeças das crianças. Preconceitos que mais tarde se podem revelar muito dolorosos para quem é alvo deles.
Acabei de ler há uns dias “O Sexo Inútil”, de Ana Zanatti. Um livro que acabou por se revelar um enorme murro no estomago para mim, que até nem me considero uma pessoa preconceituosa, xenófoba ou racista.
“Queria muito encontrar uma palavra que denunciasse esta desrazão”: de como o amor pode transformar-se numa doença aos olhos de quem ama ou de quem a ele assiste. Uma palavra que despertasse em todos a consciência de que o nosso valor é determinado por nós e não o podemos deixar à mercê dos outros, de que não podemos transformar a nossa dignidade e liberdade de ser, numa espécie de acção cujo valor sobe e desce consoante as tendências do mercado. Uma palavra que, mesmo quando sentimos que alguém desrespeita ou não reconhece a nossa humanidade, quando somos excluídos e ofendidos, mantivesse bem presente a nossa identidade e lhe desse a possibilidade de se manifestar na sua plenitude. Uma palavra que não permitisse que a nossa face vulnerável, o desejo de agradar, os medos e inseguranças abrissem uma brecha na nossa mais profunda identidade e uma mão estranha se apropriasse do que é nosso por direito”.
Este é o primeiro parágrafo de um livro de 517 páginas onde Ana Zanatti fala sobre o medo de amar que ainda sentem muitas pessoas hoje em dia. Porque no fundo é apenas disso que falamos, de amor. E o amor não tem credo, raça, idade, classe ou género, é simplesmente amor e como tal deve ser olhado.
Como escrevi atrás não penso ser racista, xenófoba ou preconceituosa, mas também eu faço inconscientemente algumas perguntas que podem ferir ou magoar a outra pessoa, mesmo que não seja essa de todo a minha intenção. “Quando é que arranjas uma namorada/o?” é um bom exemplo. Imaginemos alguém que se encontra numa fase de descoberta ou de confusão sobre a sua sexualidade e a quem é perguntado isto, sempre supondo que o objecto do amor será um ser do sexo oposto. Já imaginaram o sofrimento e angústia que uma pergunta destas pode representar? Pois, nem eu. A partir de agora vou tentar simplesmente perguntar, “quando é que te apaixonas?”, que me parece muito mais sensato. Ou então não perguntar nada porque a verdade é que não me diz respeito a vida amorosa de ninguém.
No seu livro Zanatti incluiu muitos relatos de pais e filhos, alguns dos quais verdadeiramente chocantes e vai acompanhando a história de Joana, uma estudante universitária de Medicina em luta contra o preconceito da sua família e com o medo de não desiludir os pais ou defraudar as expectativas e sonhos que eles criaram para ela. E que vive infeliz porque a vida que vive não é aquela que escolheria.
Do ponto de vista de uma mãe, houve um capítulo que me tocou ainda mais, aquele em que se fala da “saída do armário” dos pais que descobrem ter filhos homossexuais. Um ponto que até agora não tinha lido ou visto abordado, mas que me parece da mais fundamental importância. Porque os pais, mesmo alguns dos que dizem aceitar (que raio de palavra, também os teriam de aceitar se não fossem gays?), acabam por consciente ou inconscientemente “esconder” os filhos das suas relações sociais. Quantos pais é que já ouviram, em resposta à pergunta “então o teu filho já tem namorada?”, responder “não, o meu filho tem um namorado”? Eu confesso que até ao momento nenhum e até conheço alguns casos. O que é triste, porque na verdade acabam por criar um enorme sofrimento nos filhos que para estarem com os pais, tios, avós, primos, amigos, etc, têm sempre que deixar os seus companheiros de fora. Mas já se for uma filha com um namorado ou um filho com uma namorada as coisas são diferentes. Triste, muito triste.
Os pais apenas devem desejar para os filhos que estes sejam felizes, que amem e sejam amados e não se preocuparem com a opinião da vizinha do sétimo esquerdo que não tem nada a ver com o assunto. E devem ter orgulho nos filhos, sejam gays, hetero, bi, ou o que forem, porque afinal eles serão sempre seus, independentemente das suas orientações. Devem simplesmente amá-los porque eles serão sempre as mesmas pessoas e não é uma orientação sexual que faz um ser humano. Mais importante do que saber quem dá a mão ao filho é importante saber que existe alguém que lhes dá a mão e os faz sorrir. Alguém que caminha ao lado deles e partilha os seus sonhos.
A vida é uma caminhada demasiado pequenina para nos perdermos em pormenores. Sejam felizes.
Os meninos brincam com carrinhos e bonecas e as meninas brincam com bonecas e carrinhos… E o mundo será um sítio mais bonito.
Quando dei por mim estava no chão mesmo encostada à parede e só conseguia ver um pé uma e outra vez na minha direcção. Conseguia ouvir a voz da minha filha: - Pára! Pára! Estás a magoar a mamã! Pára!!!! E chorava, a minha filha linda chorava. Eu odeio ouvir as minhas filhas chorar. Ainda hoje odeio esse som. E eu só conseguia pensar que as lagartixas devem sentir-se assim, quando os miúdos as picam com pauzinhos. As coisas em que pensamos. Nem sei como conseguia pensar. A dor começou a tomar conta de mim. A dor física e outra pior, a de ouvir a minha filha chorar. Queria-me levantar, pegar nela, tirá-la do colo do pai e consolá-la. Só queria que ela parasse de chorar. Mas porque é que não me consigo levantar? Que estupidez. O meu corpo não me obedece. Eu quero levantar-me, quero sair daqui. E não consigo... Foi só quando a mais pequenina, que tinha apenas dois anos apareceu a chorar, também a chorar: - Mamã, mamã! Tás a choiar? Imaginei um daqueles pés a acertarem na minha menina tão pequenina e o meu corpo obedeceu-me. Levantou-se, pegou nela ao colo e fugiu a fechar-se na outra sala. E ela soluçava no meu colo: - Mamã, não choies. Eu faço-te fetinhas. Dou-te beijinhos. Tão pequenina. Tão frágil e ao mesmo tempo tão corajosa, a minha bebé. E a irmã continuava a chorar: - Eu quero a mamã! Quero a minha mãe. Larga-me. A minha mãe está a chorar! Deixa-me. - A tua mãe é uma ordinária. Não gosta de ti. Vamos para casa da avó. Como é que isto foi acontecer comigo? Como é que cheguei até aqui? Este homem esteve presente nos dois dias mais importantes da minha vida, viu as minhas filhas nascerem... Como é que de repente se tornou neste monstro a pontapear-me contra uma parede? Deixei de ouvir a minha filha. O pai levou-a. E recomecei a ouvi-la: - Quero a minha mãe. Deixa-me ir para o pé da minha mãe. - A tua mãe é uma puta! Uma cabra! Uma vaca! ... E por aí fora... A minha filha com apenas quatro anos ouviu palavras que nem sabia que existiam e muito menos o que significavam. O pai e os meus pais disseram-lhe em menos de cinco minutos o pior que se pode dizer de alguém. E ela só tinha quatro anos. O meu bebé. A mais pequenina continuava a tremer nos meus braços. A chorar descontroladamente. Tão pequenina. Esqueci-me das minhas dores e fiz os possíveis para a consolar. Felizmente estava cansada e acabou por adormecer. Bateram à porta: - Maria, estás aí? Abre a porta. É a mãe. Mãe? Mãe deve significar colo, carinho, consolo, apoio, AMOR. Esqueci-me que era a minha mãe que estava do lado de fora. Abri a porta pronta a receber o abraço de que tanto precisava. - Onde é que está a menina? Dá-ma. Vou levá-la para baixo, para o pé do pai. Deixa-me entrar. Já devia ter percebido. A minha mãe não me ia dar a satisfação de me dar consolo, ou sequer de me defender fosse do que fosse. É evidente que tinha vindo buscar a minha filha, quando devia ter-me vindo trazer a mais velha. Nem sequer posso dizer que fiquei chocada. Já estava habituada. Empurrei-a. Não sei se caiu da escada ou não. Fechei a porta e tranquei-a. Deixei a chave do lado de dentro, para ninguém entrar. Percebi que estava sozinha. Como sempre. E aparentemente para sempre. Comecei a ouvir um barulho na casa de banho. Estavam a tentar levantar o estore pelo lado de fora para abrirem a janela e tentarem entrar. Tranquei o estore e pelo sim pelo não, tranquei a porta. Comecei a entrar em pânico. Achei que me queriam matar. Eu sei que pode parecer dramático, mas foi exatamente o que achei. "Eles querem-me bater mais. Querem-me matar. Ninguém me vai ajudar." Entrei em pânico completo. Comecei a ouvir o ruído de uma escada a ser encostada à varanda da cozinha. Estavam a tentar entrar por aí. "Meu Deus, o que é que eu faço?" Não podia sair por lado nenhum. Estava completamente encurralada. Os meus pais e o meu, na altura ainda marido, podiam matar-me se quisessem e eu não tinha ninguém a quem recorrer. Liguei a uma amiga: - Rosa, eles vão-me matar. Ele bateu-me. Levou a minha filha. Estão a tentar entrar em casa. Muitas frases sem nexo. A minha amiga tentou acalmar-me. Finalmente lá consegui contar-lhe o que se passava. Mas é melhor começar pelo principio… Isto tudo aconteceu no dia 10 de junho de 1996. O meu casamento estava por menos de um fio, estava completamente esgaçado, não havia nada a fazer para o salvar. Costumo dizer, agora, que já passaram muitos anos, que fomos duas pessoas que casaram em Lisboa e depois cada uma delas tomou um rumo diferente, um foi para norte e o outro para sul. Não interessa para o caso qual dos dois rumos era melhor. Eram diferentes e foi isso que nos separou. Somos pessoas diferentes, com objectivos diferentes. Tínhamos mesmo muito pouco em comum, mas quando o conheci e me apaixonei acabei com todas as hipóteses de ver isso antes de nos magoarmos irremediavelmente.
Parece que ando aqui a tentar seguir uma linha de escrita, mas a verdade é que o post anterior e este são pura coincidência.
Passei o último sábado a ajudar a minha filha mais nova numa mudança de casa. Desde Agosto do ano passado que ela vive com o namorado num pequeno apartamento, um T1, tão pequenino que caberia inteiro na minha sala e ainda sobrava espaço.
Pequeno, mas muito suficiente para o casalinho, de 22 e 23 anos, ambos felizes com a independência conquistada a pulso.
Este fim-de-semana mudaram para um outro apartamento, igual em tamanho, melhor em qualidade de remodelação, dentro do mesmo prédio.
Eu sou uma estranha criatura nestas coisas. Fiquei tão genuinamente feliz quando ela falou comigo sobre ir viver com o namorado, como genuinamente feliz fiquei por me ser permitido ajudar, limpar, arrumar, participar…
As minhas filhas podem tudo desde que nunca me excluam. Façam-me sentir parte das suas vidas e eu estarei sempre feliz. Mesmo. E muito.
“Mãe, a cozinha é da tua inteira responsabilidade”. Música para os meus ouvidos. Adoro cozinhas e arrumá-las, então… É o sonho. Poder começar a encher armários, a planear onde se coloca o tacho, a espátula, os pratos… coisas de quem inventa pretextos para passar mais tempo na cozinha e se esquece que é preciso aspirar os pêlos da gata da sala…
Por isso na semana passada cozinhei (tínhamos que almoçar, certo?), planeei mentalmente tudo o que queria fazer e no sábado rumei a Lisboa, feliz da vida, por poder ajudar o casalinho a montar o seu novo ninho.
É tão gratificante ver a minha menina ( a mais velha também está no seu percurso de independência, mas é uma outra história), a viver este novo período da sua vida. O seu primeiro emprego, o receber o diploma de final de mestrado (o que eu chorei…), a ser feliz com o namorado e a gata que adoptaram… No fundo tudo e resume a vê-la crescer, tornar-se cada vez mais mulher e menos menina. Não para mim, claro, que no meu coração será SEMPRE o meu pequeno bebé, que agarrava o meu dedo na busca de consolo.
Eu sei que ela já é adulta, está lançada num mundo, que nem sabe o que o espera, mas para mim…
Saí de Lisboa já tarde, umas quase nove da noite, de músculos doridos e coração pleno de felicidade. O sorriso da minha filha, o sorriso do namorado, foram mais que suficientes para esquecer dores e cansaço. Não há nada melhor para o coração que o sorriso de um filho. Nada.
O mundo pode ruir, pode abanar à vontade. Enquanto as minhas filhas me amarem, me incluírem nas suas vidas, me deixarem arrumar as cozinhas e melhor, cozinhar para elas, o meu coração será sempre feliz. Tão feliz que às vezes parece explodir de felicidade.
A minha menina já é completamente independente. E eu adoro que assim seja. Mas ainda precisa do meu amor. E isso é o meu combustível. O amor move o mundo. Que pena que às vezes tanta gente se esqueça disso.
Parece que foi ontem que me despedi delas para irem para a faculdade. Passaram quatro anos e meio e tudo mudou. Para tão melhor.
Muito grata à vida pelas minhas meninas e pelo seu progresso e crescimento. Muito grata por me terem escolhido para mãe e me amarem tanto. Mais grata por me ser permitido amá-las sem pudor. Intensamente. A única forma que conheço de amar.