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Eu e o mundo

As minhas impressões, opiniões e outras coisas acabadas em ões sobre o mundo, pelo menos o mais próximo de mim.

Eu e o mundo

As minhas impressões, opiniões e outras coisas acabadas em ões sobre o mundo, pelo menos o mais próximo de mim.

A dependência

Nascemos dependentes e, ironicamente, morremos dependentes. Não todos, claro. Mas muitos. Quer dizer, nascer nascemos todos dependentes, morrer já é outra história.

O meu pai já teve dois AVC’s, o último dos quais lhe afectou a visão periférica para o lado esquerdo. Perdeu cerca de 50% dessa visão periférica. Entretanto foi operado para retirar uma pele do olho direito, resultado de uma lesão antiga no trabalho e recuperou alguma qualidade de vida.

Ver o meu pai perder a sua independência tem-me feito pensar muito nestas coisas.

Lembro-me de ter ido com ele a Lisboa e de o ver completamente em pânico na rua, agarrado ao meu braço como um miúdo pequeno e a assustar-se sempre que via alguém perto dele. O meu pai estaria com cerca de 25% da visão normal de um ser humano. É muito pouco. Já se imaginaram com um olho totalmente tapado e com o outro quase completamente tapado? É difícil, não é?

E no meio disto tudo, a minha mãe só lhe atirava à cara que ele era um “taralhouco”, que parecia um parvinho na rua. Enfim…

Nós nascemos completamente dependentes das nossas mães ou de quem as substitua nesse cuidado tão precioso a todos os bebés e, se pensarem bem, começamos logo à nascença a lutar para nos tornarmos independentes.

Começamos a mamar, choramos para reivindicar comida ou o que quer que seja, depois começamos a levantar a cabeça, na tentativa de ver o mundo, depois viramo-nos, e às vezes caímos das camas durante esse processo. Gatinhamos, andamos, corremos, aprendemos a andar de bicicleta, tiramos a carta e a nossa movimentação torna-se independente. Paralelamente aprendemos a comer sozinhos, a falar, a ir sozinhos para a escola, a ler, a fazer contas e acabamos por nos tornar independentes financeiramente.

E depois há um dia em que acontece qualquer coisa que nos acaba com todas estas conquistas. No caso do meu pai foi um AVC.

Eu passei em 2015 por uma experiência de semi-dependência e digo-vos já que não deve ter sido nada fácil lidar comigo.

Parti o pulso direito, tive de ser operada e levei meses para recuperar a autonomia da mão. Durante as primeiras semanas necessitei de ajuda para coisas básicas como tomar banho e descalçar as botas. Felizmente, sim que eu sou daquelas que vê sempre o copo meio cheio, não sou completamente desajeitada com a mão esquerda e conseguia pentear-me, vestir-me (excepção feita ao simples acto de abotoar o soutien), lavar a cara e os dentes, sozinha. Devagar, muito devagar, mas conseguia e isso é que importa. Sou bastante resiliente e até consegui cozinhar coisas básicas como carne guisada e fazer um pão-de-ló só com a mão esquerda. Se foi fácil? Nada, mas fiz.

Mas não podia conduzir, o meu marido tinha que me partir a carne e separar as espinhas do peixe, mas tirando isso a coisa foi-se dando. E sempre a manter-me optimista e a pensar que era uma situação passageira, que iria recuperar.

E recuperei, totalmente, que o senhor doutor que me operou era muito bom no ponto de cruz e a fisioterapeuta que me acompanhou uma mestra na arte de motivar, torcer, dobrar, puxar e outras coisas mais ou menos dolorosas mas que resultaram imenso.

Um dia feliz foi aquele em que me sentei no meu carro, dentro da garagem, e comecei a experimentar pôr as mudanças. Confesso que não foi a experiência mais fácil ou agradável da minha vida, mas eu tinha tanta vontade de recuperar a minha independência…

E reconquistei-a, devagarinho, um passo de cada vez. Actualmente já quase nem me lembro de ter partido o pulso e sou, como me dizem na clínica de fisioterapia, “um caso de estudo”, porque não tenho qualquer tipo de dor e nem as mudanças de temperatura sinto. Yeah!!!

Voltando à dependência, o meu pai viu-se forçado a deixar de conduzir, o que lhe reduz, e muito, a sua independência. O carro servia para ir às compras com a minha mãe, mas muito especialmente, para as viagens que fazia entre Alverca e o Alentejo, onde nascemos e onde ainda temos a maior parte da nossa família e uma casa.

Tenho ido levá-los e busca-los, mas eu sei que não é a mesma coisa. O ideal é a pessoa poder fazer as coisas ao seu ritmo e quando quer e não sentir que depende sempre da boa vontade ou disponibilidade de alguém, mesmo que esse alguém seja a filha.

No outro dia voltou a falar-me no assunto do carro “se calhar vou renovar a carta outra vez, ando a ver melhor desde a operação…”. À espera de uma reacção minha, que sou intempestiva e meio agressiva quando fico preocupada.

“Você é que sabe, se sente que é capaz de voltar a conduzir…”, respondi-lhe. Sei que não foi a resposta que queria ouvir, mas juro que também não foi a que lhe queria ter dado, essa seria uma negativa absoluta e definitiva. Aflige-me muito pensar nele ao volante de um carro. Mas tive tanta pena dele, da necessidade absoluta que tem de voltar a sentir que tem o controlo da sua vida e das suas movimentações…

Nascemos dependentes e morremos dependentes. A única diferença é que quando nascemos a dependência é do colo da nossa mãe e quando morremos é da boa vontade de quem estiver à nossa volta. E se quem estiver à nossa volta não tiver essa boa vontade? Se quem estiver connosco tiver mais que fazer? Se simplesmente não quiser saber?

A dependência assusta-me. Cada vez mais.

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