Parece que ando aqui a tentar seguir uma linha de escrita, mas a verdade é que o post anterior e este são pura coincidência.
Passei o último sábado a ajudar a minha filha mais nova numa mudança de casa. Desde Agosto do ano passado que ela vive com o namorado num pequeno apartamento, um T1, tão pequenino que caberia inteiro na minha sala e ainda sobrava espaço.
Pequeno, mas muito suficiente para o casalinho, de 22 e 23 anos, ambos felizes com a independência conquistada a pulso.
Este fim-de-semana mudaram para um outro apartamento, igual em tamanho, melhor em qualidade de remodelação, dentro do mesmo prédio.
Eu sou uma estranha criatura nestas coisas. Fiquei tão genuinamente feliz quando ela falou comigo sobre ir viver com o namorado, como genuinamente feliz fiquei por me ser permitido ajudar, limpar, arrumar, participar…
As minhas filhas podem tudo desde que nunca me excluam. Façam-me sentir parte das suas vidas e eu estarei sempre feliz. Mesmo. E muito.
“Mãe, a cozinha é da tua inteira responsabilidade”. Música para os meus ouvidos. Adoro cozinhas e arrumá-las, então… É o sonho. Poder começar a encher armários, a planear onde se coloca o tacho, a espátula, os pratos… coisas de quem inventa pretextos para passar mais tempo na cozinha e se esquece que é preciso aspirar os pêlos da gata da sala…
Por isso na semana passada cozinhei (tínhamos que almoçar, certo?), planeei mentalmente tudo o que queria fazer e no sábado rumei a Lisboa, feliz da vida, por poder ajudar o casalinho a montar o seu novo ninho.
É tão gratificante ver a minha menina ( a mais velha também está no seu percurso de independência, mas é uma outra história), a viver este novo período da sua vida. O seu primeiro emprego, o receber o diploma de final de mestrado (o que eu chorei…), a ser feliz com o namorado e a gata que adoptaram… No fundo tudo e resume a vê-la crescer, tornar-se cada vez mais mulher e menos menina. Não para mim, claro, que no meu coração será SEMPRE o meu pequeno bebé, que agarrava o meu dedo na busca de consolo.
Eu sei que ela já é adulta, está lançada num mundo, que nem sabe o que o espera, mas para mim…
Saí de Lisboa já tarde, umas quase nove da noite, de músculos doridos e coração pleno de felicidade. O sorriso da minha filha, o sorriso do namorado, foram mais que suficientes para esquecer dores e cansaço. Não há nada melhor para o coração que o sorriso de um filho. Nada.
O mundo pode ruir, pode abanar à vontade. Enquanto as minhas filhas me amarem, me incluírem nas suas vidas, me deixarem arrumar as cozinhas e melhor, cozinhar para elas, o meu coração será sempre feliz. Tão feliz que às vezes parece explodir de felicidade.
A minha menina já é completamente independente. E eu adoro que assim seja. Mas ainda precisa do meu amor. E isso é o meu combustível. O amor move o mundo. Que pena que às vezes tanta gente se esqueça disso.
Parece que foi ontem que me despedi delas para irem para a faculdade. Passaram quatro anos e meio e tudo mudou. Para tão melhor.
Muito grata à vida pelas minhas meninas e pelo seu progresso e crescimento. Muito grata por me terem escolhido para mãe e me amarem tanto. Mais grata por me ser permitido amá-las sem pudor. Intensamente. A única forma que conheço de amar.
Na loja de vestidos de noiva, a senhora, muito solícita, ia apertando a cada prova a cintura do vestido e repetia: “Parece que vai fazer a primeira comunhão. É tão miudinha”.
Tinha 19 anos.
Tinha começado a trabalhar em setembro e o casamento estava marcado para 28 de dezembro desse mesmo ano. O espelho devolveu-me a minha imagem. Fiquei a olhar para mim como se não me conhecesse. Onde estava o meu sorriso? A minha alegria? O brilho do meu olhar? Sempre me tinham dito que os meus olhos eram um livro aberto para a minha alma, que eram transparentes. Não me reconheci na imagem daquela miúda triste e desanimada que vestia um vestido de noiva, que parecia de primeira comunhão. Foi nesse momento que tomei a decisão de mudar as coisas. Já sabia que não ia ser fácil, mas tinha mesmo que ser. Foi aí que tudo começou a mudar.
Tinha começado a namorar com o F. com 14 anos durante as férias de verão no Alentejo. Ele era bem mais velho do que eu, acho que mais uns oito anos. Esse foi o verão da minha afirmação. Finalmente tinha deixado de usar óculos, cortei o cabelo, comprei roupas giras e senti-me, eu própria, muito gira. É um facto que a beleza também vem de dentro, ou então foi a minha recém descoberta autoconfiança que ajudou a que tudo acontecesse.
Conheci-o na aldeia, durante o verão. Ele fazia parte do grupo de amigos do meu primo. Não era muito alto, mas eu sou baixinha. Tinha olhos verdes e um ar engraçado. Também me deve ter achado piada e começámos a conversar e a trocar olhares. Descobri que tinha algum jeito para o jogo da sedução. Somos tão parvas com 14 anos. Antes do final do verão trocámos os primeiros beijos e as respetivas moradas. Nessa altura, estamos a falar de 1980, não havia telemóveis, a internet ainda não tinha sido inventada e nem toda a gente tinha telefone fixo em casa, por isso ainda se escrevia muito. Dei a morada da loja de uma amiga porque já sabia que os meus pais iam investigar quem era o tal que me andava a escrever. Infelizmente não contei com os pais da minha amiga. Demorei-me a ir buscar uma carta e a senhora, muito bem intencionada entregou-a à minha mãe. Um dia quando cheguei a casa estava o meu pai de carta, naturalmente aberta, em punho.
- Quem é este? De onde é que vocês se conhecem? Quais são as intenções dele contigo? De quem é que ele é filho?
Sei lá de quem é que ele é filho. O que é que isso interessa? Nem namorava com os pais dele… Intenções? Que intenções? Namorávamos, só isso.
- Namorar é para casar. Eu só namorei o teu pai. (Será?) Ele que fale connosco se quer namorar contigo. E a partir de hoje escreve cá para casa.
Informei o interessado, que mais velho, achou tudo muito bem. E não percebi onde me estava a meter, nem pouco mais ou menos.
Tenho que confessar que tive outros namorados. Nunca lhe fui fiel. Lamento, mas tinha 14 anos. E ele estava no Alentejo. Acho que na minha cabeça o namoro só era oficial quando eu lá ia. Começou a escola e descobri que as minhas mudanças davam na vistas. Tive muitos namorados nesse e nos anos seguintes. Ele continuava no Alentejo e continuávamos a namorar, por carta, claro, e sempre que eu ia ao Alentejo. Agora com a bênção parental.
Acho que nunca gostei verdadeiramente dele, era demasiado miúda. Nunca passámos de beijinhos e pouco mais. Nunca o deixei avançar muito, era muito púdica, dizia ele, eu simplesmente não tinha vontade de avançar mais. Já tinha lido muitos romances e achava que ainda não sentia o necessário por ele para avançar para coisas mais íntimas. É o que dá ler muitos livros, a pessoa fica com ideias…
Acabei o 11º ano e passei o verão a tirar um curso de “secretariado e práticas de escritório”, que me permitiu começar a trabalhar em setembro. Os meus pais, os dele e o próprio marcaram o casamento. Os pais deles deram-lhe o dinheiro para a entrada de um apartamento, um rés-do-chão com quintal a menos de cinco minutos da casa dos meus pais, e os meus pais mobilaram-no com uns móveis em “estilo antigo” absolutamente terríveis. Começámos (começaram, nem sei) a mandar convites, a escolher restaurantes, fotógrafos e o vestido de noiva…
Comecei a perceber o que estava a acontecer. Caí na real, como dizem os brasileiros. Caiu-me a ficha, como se diz agora.
Perdi o sorriso, a alegria, a vontade de tudo… No sítio onde eu trabalhava a minha patroa, uma pessoa fantástica começou a apertar comigo para lhe contar o que se passava. Contei-lhe tudo, mas tinha a sentença lida: “Se não te casares sais de casa”. E eu ganhava uma miséria e, convenhamos, continuava a ser uma miúda, tinha 19 anos. A minha filha mais nova tem agora 20 e não consigo imaginá-la nem perto de um altar. A minha patroa foi maravilhosa: “Se o teu pai te puser na rua, vais para minha casa até resolveres as coisas. Ajudas-me com as miúdas. Não ficas na rua, não te preocupes”. Ganhei coragem. As minhas colegas de trabalho também me ajudaram, aliás foi na casa de uma delas que me refugiei.
Falei com o noivo, disse-lhe que não conseguia continuar com aquela farsa, que não gostava dele, que era muito miúda, que ainda queria fazer muita coisa. Ficou violento, levantou-me a mão, tive de me defender, levantei um joelho, acertei-lhe num sítio delicado e fugi. Corri para minha casa, contei que me tinha tentado bater, perguntaram-me porquê e repeti a história: “Não consigo casar com ele, tenho nojo dele, não suporto que me toque, não aguento o cheiro dele, não gosto dele”.
Insultos, insultos, insultos, ameaças, ameaças e mais ameaças. “Casas a bem ou a mal. Não me vais envergonhar na minha terra, que nunca mais lá vou poder pôr os pés. O que é que vamos dizer às pessoas?”. As pessoas, sempre as pessoas, sempre os outros, muito mais importantes do que uma filha feliz ou infeliz.
As coisas pioraram e muito. No dia seguinte, esperei que a minha mãe saísse para a missa, provavelmente para pedir a Deus uma filha mais obediente e com menos vontade própria, e que o meu pai saísse para a tasca e saí também, com um saquinho pequenino, para não dar muito nas vistas, só com uma muda ou duas de roupa e fui direta a casa de uma das minhas colegas de trabalho. Chorei, chorei, já nem me lembro bem, já se passaram 30 anos. Fiquei lá apenas umas horas. Os meus pais fizeram uma pequena investigação e acabaram por me ir lá buscar.
Novas regras em casa: “A partir de agora se quiseres comer, compras a comida e cozinhas para ti (que novidade, desde os sete anos que fazia o meu almoço)”. O meu pai deixou de me falar a não ser que fosse para me insultar, a minha mãe andava mais ou menos na mesma. Mas o casamento ficou fora de hipótese. Menos mal.
Quando fomos começar a tirar as coisas ao tal apartamento de rés-do-chão com quintal, o F. apareceu e começou a insultar-me a mim e à minha mãe. Pela primeira, e acho que única vez na minha vida, o meu pai defendeu-me, mas se calhar foi só porque o meu tio estava lá e ele sentiu-se nessa obrigação. Ele ameaçou atirar coisas da chaminé para cima da minha mãe e eu atirei-lhe uma bela jarra de cristal à cabeça, que lhe abriu a testa. Ameaçou-me com uma queixa. Nem me incomodei a responder-lhe. Para quê?
O meu pai esteve uns dois anos sem ir ao Alentejo e a minha mãe foi lá comigo quando nasceu a minha afilhada, filha de uma irmã dela. Mas ficámos em casa da minha tia, não na nossa casa, demasiado central e exposta, e fomos a casa de um outro tio pelas ruas de “trás”, pelo meio dos campos. A minha mãe tinha vergonha e não queria “passar à porta dos pais dele”, que “não sei o que hei-de dizer às pessoas”, porque “tu só me fazes passar vergonhas”. Enfim.
Devolvi o vestido de noiva, o tal que parecia de primeira comunhão. Fiquei com um crédito na loja para futuras compras. Menos mal. Recuperei o sorriso e o brilho dos olhos.
As loiças, os tachos, os lençóis, as toalhas voltaram a ser arrumadas no sótão. Os móveis foram devolvidos e alguns transitaram para casa dos meus pais. Ainda hoje lá estão. Era de “estilo antigo”, de boa qualidade. “Já não se fazem móveis assim”. Ainda bem, são horríveis. E cheios de má energia.
Eu? Eu nunca tive vergonha de voltar ao Alentejo. Vergonha de quê? Não matei nem roubei ninguém. Não tenho que ter vergonha de querer ser feliz, pois não? Não sei se ele alguma vez casou. Cruzei-me uma ou duas vezes com ele depois disso, mas confesso que não senti qualquer remorso. Se não ultrapassou é porque é fraco de carácter e isso só dá mais razão à minha decisão de não querer casar com ele. Acho que nunca mais vi os pais dele, o que é curioso porque falamos de uma aldeia pequena onde toda a gente se conhece. Mas também não vou lá assim tanta vez.