Quando dei por mim estava no chão mesmo encostada à parede e só conseguia ver um pé uma e outra vez na minha direcção. Conseguia ouvir a voz da minha filha: - Pára! Pára! Estás a magoar a mamã! Pára!!!! E chorava, a minha filha linda chorava. Eu odeio ouvir as minhas filhas chorar. Ainda hoje odeio esse som. E eu só conseguia pensar que as lagartixas devem sentir-se assim, quando os miúdos as picam com pauzinhos. As coisas em que pensamos. Nem sei como conseguia pensar. A dor começou a tomar conta de mim. A dor física e outra pior, a de ouvir a minha filha chorar. Queria-me levantar, pegar nela, tirá-la do colo do pai e consolá-la. Só queria que ela parasse de chorar. Mas porque é que não me consigo levantar? Que estupidez. O meu corpo não me obedece. Eu quero levantar-me, quero sair daqui. E não consigo... Foi só quando a mais pequenina, que tinha apenas dois anos apareceu a chorar, também a chorar: - Mamã, mamã! Tás a choiar? Imaginei um daqueles pés a acertarem na minha menina tão pequenina e o meu corpo obedeceu-me. Levantou-se, pegou nela ao colo e fugiu a fechar-se na outra sala. E ela soluçava no meu colo: - Mamã, não choies. Eu faço-te fetinhas. Dou-te beijinhos. Tão pequenina. Tão frágil e ao mesmo tempo tão corajosa, a minha bebé. E a irmã continuava a chorar: - Eu quero a mamã! Quero a minha mãe. Larga-me. A minha mãe está a chorar! Deixa-me. - A tua mãe é uma ordinária. Não gosta de ti. Vamos para casa da avó. Como é que isto foi acontecer comigo? Como é que cheguei até aqui? Este homem esteve presente nos dois dias mais importantes da minha vida, viu as minhas filhas nascerem... Como é que de repente se tornou neste monstro a pontapear-me contra uma parede? Deixei de ouvir a minha filha. O pai levou-a. E recomecei a ouvi-la: - Quero a minha mãe. Deixa-me ir para o pé da minha mãe. - A tua mãe é uma puta! Uma cabra! Uma vaca! ... E por aí fora... A minha filha com apenas quatro anos ouviu palavras que nem sabia que existiam e muito menos o que significavam. O pai e os meus pais disseram-lhe em menos de cinco minutos o pior que se pode dizer de alguém. E ela só tinha quatro anos. O meu bebé. A mais pequenina continuava a tremer nos meus braços. A chorar descontroladamente. Tão pequenina. Esqueci-me das minhas dores e fiz os possíveis para a consolar. Felizmente estava cansada e acabou por adormecer. Bateram à porta: - Maria, estás aí? Abre a porta. É a mãe. Mãe? Mãe deve significar colo, carinho, consolo, apoio, AMOR. Esqueci-me que era a minha mãe que estava do lado de fora. Abri a porta pronta a receber o abraço de que tanto precisava. - Onde é que está a menina? Dá-ma. Vou levá-la para baixo, para o pé do pai. Deixa-me entrar. Já devia ter percebido. A minha mãe não me ia dar a satisfação de me dar consolo, ou sequer de me defender fosse do que fosse. É evidente que tinha vindo buscar a minha filha, quando devia ter-me vindo trazer a mais velha. Nem sequer posso dizer que fiquei chocada. Já estava habituada. Empurrei-a. Não sei se caiu da escada ou não. Fechei a porta e tranquei-a. Deixei a chave do lado de dentro, para ninguém entrar. Percebi que estava sozinha. Como sempre. E aparentemente para sempre. Comecei a ouvir um barulho na casa de banho. Estavam a tentar levantar o estore pelo lado de fora para abrirem a janela e tentarem entrar. Tranquei o estore e pelo sim pelo não, tranquei a porta. Comecei a entrar em pânico. Achei que me queriam matar. Eu sei que pode parecer dramático, mas foi exatamente o que achei. "Eles querem-me bater mais. Querem-me matar. Ninguém me vai ajudar." Entrei em pânico completo. Comecei a ouvir o ruído de uma escada a ser encostada à varanda da cozinha. Estavam a tentar entrar por aí. "Meu Deus, o que é que eu faço?" Não podia sair por lado nenhum. Estava completamente encurralada. Os meus pais e o meu, na altura ainda marido, podiam matar-me se quisessem e eu não tinha ninguém a quem recorrer. Liguei a uma amiga: - Rosa, eles vão-me matar. Ele bateu-me. Levou a minha filha. Estão a tentar entrar em casa. Muitas frases sem nexo. A minha amiga tentou acalmar-me. Finalmente lá consegui contar-lhe o que se passava. Mas é melhor começar pelo principio… Isto tudo aconteceu no dia 10 de junho de 1996. O meu casamento estava por menos de um fio, estava completamente esgaçado, não havia nada a fazer para o salvar. Costumo dizer, agora, que já passaram muitos anos, que fomos duas pessoas que casaram em Lisboa e depois cada uma delas tomou um rumo diferente, um foi para norte e o outro para sul. Não interessa para o caso qual dos dois rumos era melhor. Eram diferentes e foi isso que nos separou. Somos pessoas diferentes, com objectivos diferentes. Tínhamos mesmo muito pouco em comum, mas quando o conheci e me apaixonei acabei com todas as hipóteses de ver isso antes de nos magoarmos irremediavelmente.
Parece que ando aqui a tentar seguir uma linha de escrita, mas a verdade é que o post anterior e este são pura coincidência.
Passei o último sábado a ajudar a minha filha mais nova numa mudança de casa. Desde Agosto do ano passado que ela vive com o namorado num pequeno apartamento, um T1, tão pequenino que caberia inteiro na minha sala e ainda sobrava espaço.
Pequeno, mas muito suficiente para o casalinho, de 22 e 23 anos, ambos felizes com a independência conquistada a pulso.
Este fim-de-semana mudaram para um outro apartamento, igual em tamanho, melhor em qualidade de remodelação, dentro do mesmo prédio.
Eu sou uma estranha criatura nestas coisas. Fiquei tão genuinamente feliz quando ela falou comigo sobre ir viver com o namorado, como genuinamente feliz fiquei por me ser permitido ajudar, limpar, arrumar, participar…
As minhas filhas podem tudo desde que nunca me excluam. Façam-me sentir parte das suas vidas e eu estarei sempre feliz. Mesmo. E muito.
“Mãe, a cozinha é da tua inteira responsabilidade”. Música para os meus ouvidos. Adoro cozinhas e arrumá-las, então… É o sonho. Poder começar a encher armários, a planear onde se coloca o tacho, a espátula, os pratos… coisas de quem inventa pretextos para passar mais tempo na cozinha e se esquece que é preciso aspirar os pêlos da gata da sala…
Por isso na semana passada cozinhei (tínhamos que almoçar, certo?), planeei mentalmente tudo o que queria fazer e no sábado rumei a Lisboa, feliz da vida, por poder ajudar o casalinho a montar o seu novo ninho.
É tão gratificante ver a minha menina ( a mais velha também está no seu percurso de independência, mas é uma outra história), a viver este novo período da sua vida. O seu primeiro emprego, o receber o diploma de final de mestrado (o que eu chorei…), a ser feliz com o namorado e a gata que adoptaram… No fundo tudo e resume a vê-la crescer, tornar-se cada vez mais mulher e menos menina. Não para mim, claro, que no meu coração será SEMPRE o meu pequeno bebé, que agarrava o meu dedo na busca de consolo.
Eu sei que ela já é adulta, está lançada num mundo, que nem sabe o que o espera, mas para mim…
Saí de Lisboa já tarde, umas quase nove da noite, de músculos doridos e coração pleno de felicidade. O sorriso da minha filha, o sorriso do namorado, foram mais que suficientes para esquecer dores e cansaço. Não há nada melhor para o coração que o sorriso de um filho. Nada.
O mundo pode ruir, pode abanar à vontade. Enquanto as minhas filhas me amarem, me incluírem nas suas vidas, me deixarem arrumar as cozinhas e melhor, cozinhar para elas, o meu coração será sempre feliz. Tão feliz que às vezes parece explodir de felicidade.
A minha menina já é completamente independente. E eu adoro que assim seja. Mas ainda precisa do meu amor. E isso é o meu combustível. O amor move o mundo. Que pena que às vezes tanta gente se esqueça disso.
Parece que foi ontem que me despedi delas para irem para a faculdade. Passaram quatro anos e meio e tudo mudou. Para tão melhor.
Muito grata à vida pelas minhas meninas e pelo seu progresso e crescimento. Muito grata por me terem escolhido para mãe e me amarem tanto. Mais grata por me ser permitido amá-las sem pudor. Intensamente. A única forma que conheço de amar.
No outro dia em conversa com uma amiga que se queixava das coisas “más” que a filha de quatro anos e meio lhe diz quando se chateia com ela ou quando tem de lhe impor regras, lembrei-me de um dos muitos momentos com a minha filha mais velha.
Dizia-me a minha amiga que no auge de uma birra a filha lhe disse: “Qualquer dia vou-me embora desta casa”. E eu lembrei-me.
Estávamos a ter uma discussão, eu e a Sara, não me lembro sobre o quê, quando a pirralha, para aí com uns três anos se virou para mim, toda decidida e diz: “Quero-me ir embora desta casa”.
“Queres? Está bem. Anda lá que eu ajudo-te a fazer a mala. Vais para onde?”, perguntei-lhe.
“Vou para casa da avó”, que morava no andar de baixo, respondeu, toda cheia de estilo.
“Não, para casa da avó não pode ser, que a avó não pode ficar lá contigo, tens de ir para outro sítio qualquer”, fui-lhe dizendo enquanto lhe metia umas roupas numa mochila.
Abri-lhe a porta, dei-lhe a mochila e um beijinho e fiquei a vê-la a descer a escada, a olhar por cima do ombro para ver se eu a estava a ver ou se ia atrás dela. Fui-lhe dizendo adeus e quando ela acabou de descer a escada desci também para ver até onde ela ia. Ainda pôs a mão no puxador do portão para o abrir, mas depois começou a vacilar, sentou-se no degrau a fazer beicinho, com ar de quem não sabia muito bem o que fazer à vida.
Cheguei ao pé dela e disse-lhe: “Então não ias embora?”.
Pensam que ela deu o bracinho a torcer? Nem pensar nisso ou não fosse ela minha filha: “Acho que vou só amanhã. Esqueci-me de umas coisas…”.
Voltámos para casa, desfizemos a mochila e nunca mais falámos no assunto, mas também nunca mais me ameaçou que fugia de casa. Deve ter ficado a pensar no caso.